A ANARQUIA PROPAGADA E DISCUTIDA ENTRE OPERÁRIOS

31-03-2013 00:00

 

A ANARQUIA PROPAGADA E DISCUTIDA ENTRE OPERÁRIOS

                                                                                            J. Lleros
I
Na oficina já se trabalhava havia três horas. Entre o barulho ensurdecedor das plainas mecânicas e o chiado agudo das serras circulares, os 30 marceneiros curvados como sempre na bancada de trabalho esperavam, não sem ansiedade, que o apito da máquina desse o sinal de descanso.  Aquela ansiedade, maior que a habitual, também se justificava porque naquele dia um novo trabalhador havia começado a trabalhar na oficina.
É costume tradicional entre os operários de todas as categorias comemorar, na hora do almoço, a chegada de um novo camarada com uma garrafa de licor que o recém-chegado é, por assim dizer, obrigado a oferecer aos colegas; e por isso naquele dia os olhos dos 30 trabalhadores passavam, mais que o normal, da bancada de trabalho ao relógio de pêndulo pendurado no fundo do barracão.
Finalmente soaram as dez e, antes de a máquina terminar o seu apito agudo e prolongado, os trabalhadores já haviam deixado as diversas ferramentas de trabalho e, depois de sacudir com as mãos a poeira de madeira que se depositara nos braços, nas costas, por todo o corpo, enfim, preparavam-se para tomar o lanche.
Desde o princípio, naturalmente, começaram a falar do novo romeiro, o qual, como se não se desse conta de ser o alvo da conversa, sentara-se sobre uma pilha de tábuas no fundo da oficina, lendo um jornal enquanto comia. Em menos de meia hora os trabalhadores haviam terminado de comer e estavam reunidos, como de costume, em torno da bancada de José, o operário mais antigo da oficina. Como o recém-chegado teimava em continuar lá no fundo, decidiu-se que o próprio José iria até ele para lembrar-lhe do dever de novo camarada.
Então José aproximou-se do torneiro e, pondo a mão amigavelmente em seu ombro, disse:
- Como é o seu nome, camarada?
- Meu nome é Artur - respondeu o interpelado, deixando o jornal cair sobre os joelhos.
 José certamente teria ido direto ao assunto se seus olhos não tivessem pousado no jornal que permanecera aberto e em cujo cabeçalho havia lido: A Agitação - jornal Socialista-Anarquista. Isso naturalmente o fez mudar de idéia, pois, olhando o torneiro nos olhos, perguntou:
- O que você está lendo no jornal?
- Um artigo de Malatesta sobre as organizações operárias.
- E não poderia gastar melhor o seu tempo?
- Não acredito que exista um meio melhor para nós que o de dedicar o pouco de tempo que nos resta lendo e aprendendo.
- Eu também acho! Mas você sabe que jornal é esse?
- Essa é boa! Devo saber muito bem, já que reflete as minhas idéias.
- Então você é...
- Anarquista... Isso mesmo...
Aquela declaração deixou José um pouco desconcertado, pois, voltando-se para os outros operários, que pouco a pouco haviam se aproximado, fez uma careta de contrariedade.
- Lamento dizer - recomeçou depois, olhando sério para Artur -, mas essa qualidade não é motivo de orgulho entre nós.
- E por que, se posso perguntar?
- Porque não queremos ter nada a ver com assassinos.
- E quem disse que os anarquistas são assassinos?
- E não é verdade?
- Não pode existir calúnia maior que essa; e, se você tivesse lido algo a respeito das nossas idéias, teria percebido que não apenas não somos assassinos, mas somos os mais ferrenhos inimigos do assassinato, sob qualquer forma e seja quem for seu autor. E todos vocês se convencerão disso quando eu tiver tempo de lhes explicar o quanto de grande e de belo está encerrado na palavra Anarquia.
Desta vez quem replicou foi Antônio, o lustrador, que, desejando demonstrar toda a sua ciência positiva e, com a certeza de confundir Artur, lhe perguntou:
- Então, responda: Bresci, Caserio e Angiolillo não eram anarquistas?
- Eram sim, e daí?
-Nesse caso, a partir do momento em que você diz que eles eram anarquistas, isso significa que aquilo que eles fizeram correspondia exatamente aos princípios de vocês e portanto...
- Ouçam, sinto muito que esta observação me seja feita justamente agora, pois, se eu tivesse tempo de fazer com que vocês compreendessem um pouco os nossos objetivos, talvez pudesse explicar-lhes mais facilmente a questão.
- Se eles agiram em conformidade com nossos princípios é algo que vou demonstrar mais tarde, ou seja, quando vocês adquirirem um conceito mais claro e definido sobre nós; agora, porém, quero que vocês compreendam que eles não foram nem podem ser considerados assassinos.
- E como você pode afirmar isso? - disseram em coro dois ou três dos ouvintes.
- De uma maneira muito simples. Alguns de vocês devem ter assistido à comemoração realizada domingo passado no Teatro Massimo ...
- Eu também estive lá - respondeu o lustrador.
- E você sabe quem era homenageado?
- Não me lembro bem; um certo ... ber...
Ober...
- Oberdank", não é?
- Isso mesmo.
- E você sabe quem foi Oberdank?
- Para dizer a verdade não sei quem foi, mas com certeza deve ter sido um grande homem, considerando a quantidade de pessoas presentes na comemoração e o que disseram três ou quatro senhores de cartola que pronunciaram os discursos. Aliás, um deles disse precisamente isto: "Hoje homenageamos um herói!"
- Está certo! Mas você não sabe por que Oberdank foi um herói?
- Ah, isso eu não sei.
- Pois então eu vou dizer... Oberdank foi um herói porque tentou, nem mais nem menos, fazer o mesmo que fizeram Caserio, Angiolillo e Bresci.
- Você está brincando!
- Não estou brincando; é sério. E, se você tivesse lido um pouco da história, não ficaria tão admirado. Assim como Bresci e os outros, Oberdank também tinha uma crença e, como eles, soube apaixonar-se tanto pelo próprio Ideal a ponto de nutrir um ódio profundo contra os que eram inimigos ferrenhos daquele Ideal – como eles, Oberdank levantou a mão vingadora contra um inimigo da sua fé e como eles foi martirizado e morto. Portanto, vocês podem perceber que, se tantas honras e homenagens são dedicadas a Oberdank, não é justo que sejam difamados outros homens que não fizeram nem mais nem menos do que aquilo que ele fez.          
- Mas então por que até o farmacêutico do outro lado da ma, que é um homem instruído, aplaudia os que homenageavam Oherdank e é tão contrário a Bresci, que ele chama de assassino?
- Por um motivo muito lógico. A fé que armou o braço de Oberdank não foi a mesma que armou o de Bresci; aliás, as duas idéias são totalmente contrárias uma à outra. Hoje o partido pelo qual Oherdank lutou e caiu dedica-lhe honras, assim como é lógico que, quando amanhã nosso Ideal, pelo qual lutaram Bresci, Caserio e Angiolillo e tantos outros, tiver conquistado o primeiro lugar entre os homens, eles naturalmente, como nossos mártires, deverão ter estima e admiração.
José, que permanecera mudo até então, tomou novamente a palavra.
- Realmente você tem razão, e agora sou o primeiro a concordar que fiz mal em falar-lhe daquela maneira sem antes conhecer aquilo que você disse agora, mas você deve convir que nós, operários, não temos de nos envolver nesses partidos políticos em que não existe nada a ganhar.
- Ao contrário, os operários ganharão muito sendo anarquistas... Mas já está tarde... Amanhã começarei a falar com vocês sobre esse assunto.
A máquina fez ouvir novamente o seu apito agudo e prolongado. As plainas recomeçaram a ranger, as serras retomaram o seu giro vertiginoso e cinco minutos depois os 30 operários estavam novamente curvados sobre suas bancadas de trabalho.
II
No dia seguinte, Artur já havia feito amizade com os novos colegas de trabalho, os quais, após a discussão do dia anterior, já tinham por ele aquela estima, digamos assim, que o operário com um pouco de instrução logo consegue conquistar entre os colegas de oficina. Desta vez foi ele que, assim que a máquina fez ouvir o apito que era o sinal da hora do almoço, foi sentar-se no meio do grupo, desejoso de retomar a discussão do ponto em que a interrompera.
O lustrador que, apesar do defeito de querer saber mais que os outros e da mania de estar a par de fatos que no fundo nem sequer conhecia, era, contudo, um bom rapaz e até mesmo um pouco desejoso de aprender alguma coisa, logo começou a falar.
- Você estava dizendo que nós, operários, ganharíamos muito se nos interessássemos e seguíssemos as teorias de vocês e prometeu que nos explicaria isso hoje. Vamos ouvir.
- Ontem eu disse que os operários ganhariam muito assistindo às nossas discussões e acrescento hoje que o interesse deles por nós chega a ser até um dever.
 
- Ora, só faltava isso!
- Precisamente!... É um dever para os operários interessar-se pela nossa propaganda e espero convencer vocês com um exemplo. Vamos supor que você, José, morasse no campo e não tivesse nem sequer um banquinho para se sentar. Certa tarde, ao voltar para casa, encontra pelo caminho uma árvore que a tempestade do dia anterior derrubou na floresta vizinha. Aquela árvore lhe serviria muito bem para fazer um banquinho e você a apanha; com um esforço enorme, você a leva para casa e, chegando lá, a serra, a aplaina, enfim, constrói a comodidade de que precisa para se sentar. Até aqui nada de extraordinário, mas um belo dia, enquanto você está sentado tranquilamente em seu banco, entra em casa um indivíduo que você não conhece. Aquele homem é um vagabundo, nunca trabalhou, e não seria capaz de pregar um prego; mesmo assim, com um descaramento sem igual, lhe diz: "Dê-me aquele banco porque é meu!" Você fica sem ação, abre a boca para falar, mas antes de conseguir dizer meia palavra o indivíduo tira do bolso do casaco uma papelada onde ele mesmo escreveu aquilo que julgou suficiente para poder roubar o seu banco e que não passa de um monte de mentiras. Você não é instruído, não entende que o que está escrito foi feito precisamente para prejudicá-lo, e ele se aproveita disso para lhe contar uma série de histórias, direito, propriedade, herança, lei, todas essas coisas que você não compreende e que fazem com que as pretensões dele sobre o seu banco pareçam justas para sua mente.
- Mas é preciso ver se eu seria tão estúpido a ponto de me deixar embrulhar pelo papo e pela papelada.
- Ele previu também isso, ele sabe muito bem que, se você quisesse, jamais conseguiria levar embora o seu banco; ele compreende que, se você teimasse em considerar injustas as pretensões dele e se, em última instância, se decidisse a expulsá-Io com um formidável chute no traseiro, não poderia reagir porque é fraco e só tem uma parte muito pequena da força que você tem. Ele sabe muito bem tudo isso e, para ter mais certeza, trouxe consigo dois de seus empregados, que entram em ação no momento oportuno. Um deles aponta um revólver para o seu rosto e lhe diz: "Entregue logo o banco ao meu patrão, ou então eu mato você"; o outro se finge de amigo, enche sua cabeça com histórias de recompensas futuras, de submissão, de vontade divina, para convencê-lo, docilmente, a se deixar roubar.
- Mas neste caso seria um roubo a mão armada.
- É isso mesmo, José, um roubo a mão armada no verdadeiro significado da palavra e, quando, no lugar dos personagens simbólicos do exemplo, nós colocarmos os verdadeiros personagens, você perceberá como ele se repete todos os dias sem que nos pareça isso; mas voltemos ao exemplo. Então essas três pessoas reunidas agem de tal modo sobre a sua mente que retiram aquele pouco de luz que poderia haver ali, tanto que você, sem pensar mais em discutir as pretensões deles, se deixa convencer de que o banco não é seu e acaba maldizendo a sorte que o obrigou a se sentar no chão, enquanto aquele vagabundo leva tranquilamente o seu banquinho, zombando de sua ingenuidade.
- Mas eu gostaria de saber o que isso tudo tem a ver com a anarquia e com os anarquistas!
- Tenha um pouco de paciência e depois vamos explicar melhor. Agora, acontece que, enquanto os três cúmplices levam embora o seu trabalho, passa diante de sua casa um outro indivíduo. Este não conhece você e poderia continuar cuidando da própria vida sem se preocupar com você, mas não o faz. Aquele homem tem coração, fica com pena de você, compreende que está sendo cometido um furto em seu prejuízo e quer ajudá-lo: entra na casa sem se importar com o revólver que o mesmo empregado ainda segura ameaçadoramente na mão, percebe que os três bandidos acabaram dopando-o para fazê-lo dormir e poder roubá-lo livremente, chama você, sacode-o e grita em seu ouvido: "Acorde. imbecil' Não percebe que está sendo roubado?" Naturalmente, os três ladrões dirigem a sua ira contra o recém-chegado, que vem, por assim dizer, estragar os planos deles. Atacam aquele homem para impedir que os gritos dele acordem você, tentam amordaçá-lo para obrigá-Io a se calar, mas ele se debate, não desiste e grita a plenos pulmões: "Acorde! Não está vendo que estão roubando você?... " Ora, digam-me, qual teria sido o seu dever neste caso?
- Que pergunta! ... Naturalmente, eu procuraria socorrer quem se expôs a um perigo por minha causa.
- E se, ao invés disso, você se unisse aos três ladrões para sufocar aquele homem que entrou precisamente para defendê-lo, como deveria chamar-se a sua ação?
- Uma ação infame, assim como eu seria infame se a cometesse... Mas, no fim das contas, tenho a impressão de que o que você está nos contando não tem nada a ver com a anarquia.
- E se eu lhe dissesse que o quarto indivíduo, o homem que viera para acordar você e que tinha direito ao seu reconhecimento, é justamente um anarquista?
- Imagine!... São lorotas!
- São verdades inquestionáveis, caro José. Mas vamos por partes. Portanto: o homem do exemplo que, com o suor de seu rosto, havia fabricado uma comodidade para sua família é você, assim como todos aqueles que trabalham e produzem; o ladrão que vem roubá-Ia é o dono da oficina, assim como todos os proprietários que não trabalham e não produzem; seus cúmplices, ou melhor dizendo, seus servos são o soldado e o padre, que, por sua vez, representam o exército e o clericalismo.
- Ei! Espere um pouco, meu caro, tenho a impressão de que você está muito enganado. Em primeiro lugar, o dono da oficina não rouba nada de ninguém.
- Você acha? ... Então me diga: onde você colocou o armário que terminou ontem?
- Eu o entreguei ao patrão, mas o armário não era meu.
- Então, não foi você que o fez?
- Claro que eu o fiz, mas para isso usei a madeira do patrão, as máquinas do patrão, e é justo que ele exija o fruto do seu capital.
- E quem lhe disse que a madeira e as máquinas são dele? Vamos voltar ao nosso exemplo. Vamos supor que o ladrão da fábula, depois de roubar o seu banquinho, o trocasse, por exemplo, por um par de sapatos. Você acha que aqueles sapatos são dele?
- Claro que não, porque ele os conseguiu em troca do meu banco, e então os sapatos deveriam ser meus.
- Claro! O mesmo acontece com o patrão. As máquinas, a madeira, tudo o que você está vendo não pertence ao patrão, porque ele nunca trabalhou e os comprou com o dinheiro obtido com a venda dos móveis que não eram dele, e sim dos operários que os haviam fabricado, e ele se apropriou deles lançando mão da lei que não é outra coisa senão a papelada de que se valeu o ladrão da fábula para fazer valer as suas pretensões diante de você,
"Sim, caros amigos, aquilo que para vocês parece a coisa mais natural deste mundo não passa de uma série de ladroagens descaradamente cometidas em prejuízo de vocês.
O patrão nos rouba o nosso suor todos os dias e, quando alguns de nós levantam a voz para pedir uma pequena parte daquilo que nos é devido, envia contra eles um batalhão de soldados com a ordem de fazê-los calar a boca com um golpe de fuzil no estômago, Quanto ao padre, o outro aliado e cúmplice do patrão, em seguida terei tempo para lhes explicar como suas doutrinas não passam de um amontoado de mentiras habilmente inventadas para atrofiar o cérebro dos nossos filhos e tirar deles a idéia de pensar por conta própria.
Mas para colocar um obstáculo não insignificante nessa ordem de coisas vieram os anarquistas; nós, que livramos nosso cérebro de tantos preconceitos e, depois de analisar e estudar minuciosamente a sociedade de hoje, nos convencemos de que ela é uma entidade imoral e nociva com todas as suas instituições, preconceitos e privilégios.  
Animados pelo desejo de recriar-nos em comum, declaramos guerra aos poderosos, pois não queremos mais sofrer inconscientemente esse estado de coisas e começamos uma propaganda ativa e incessante com o objetivo de despertar o operário enfraquecido pelo servilismo e pelo preconceito, para fazê-lo reconhecer todos os seus direitos e ensinar-lhe o caminho para conquistá-los,
“É natural que nossa ação não pode agradar aos proprietários e aos senhores, por isso eles voltaram contra nós roda a sua raiva, e isso explica as perseguições que sofremos continuamente, mas que jamais nos farão voltar atrás nem mudar de idéia."
- Tudo o que você está nos dizendo é bonito, sem dúvida, mas palavras, meu caro, não enchem barriga. Eu tenho certeza de que, se não existissem os patrões que nos dão trabalho, morreríamos de fome.
- Ao contrário, caro José' Sem patrões nós viveríamos muito melhor do que hoje, e vou convencê-los disso amanhã, porque hoje não tenho tempo para fazê-lo.
- Está bem! Até amanhã, então'
 
La Nuova Gente,SP, ano I. numeros 1 e 2,
1o e 15 nov. 1903.